Por que os atos de 8 de janeiro devem ser considerados terrorismo
A implicação do ex-Presidente parece evidente. Pregava a xenofobia e o preconceito, e praticava atos de discriminação política, ideológica e cultural
1. Muito se tem dito sobre a inaplicabilidade da Lei Antiterrorismo aos crimes praticados em oito de janeiro de 2023, em Brasília.
Esses crimes devem ser analisados no contexto do regime anticonstitucional que vigorou no Brasil, no curso do governo que se deve, cada vez por maiores e mais graves razões, considerar ilegítimo, entre 2018 e 2022. No bojo, portanto, da constante prática de ilícitos contra a Constituição, desrespeitada de modo militante, nos valores, direitos, deveres e políticas públicas que determina.
Ainda, em conexão com o fato de ter havido displicência e, em alguns casos, participação das forças de segurança – polícias militares e forças armadas, especificamente no episódio. Nesse aspecto, deve ser considerado o insólito fato de o ex-ministro da justiça e ex-secretário de segurança do Distrito Federal, ora preso – segundo ministro do regime inconstitucional preso preventivamente – ter em seu poder projeto de decreto ilegal e inconstitucional, que objetivava suspender o Estado Democrático de Direito e anular resultado de eleições legítimas. Esse fato implica o ex-Presidente da República, pelo aspecto jurídico simples que o torna responsável pelos atos de seus ministros, sendo titular da atribuição de editar decretos.
Feitas tais observações, passo a apresentar os três motivos pelos quais, em minha opinião, aqueles atos de invasão, agressão e depredação, de oito de janeiro - consequentes aos crimes contra o Estado Democrático de Direito configurados nos bloqueios de rodovias, e nos acampamentos nas imediações de quartéis, bem como à tentativa de explosão de veículo nas proximidades do aeroporto de Brasília e à queima de ônibus nas ruas da mesma Capital, e antecedentes aos de sabotagem de torres e linhas de transmissão de energia – devem ser considerados crimes de terrorismo.
2. Como se sabe, a Lei Antiterrorismo, que regulamenta o artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, tramitou às vésperas da Copa do Mundo sediada no Brasil, correspondendo a uma condição exatamente para a realização desse torneio, tendo sido aprovada com extrema cautela, pela preocupação do governo democrático de Dilma Rousseff em não dar margem à criminalização de movimentos legítimos políticos e sociais. É o que se observa na mensagem de veto, encaminhada ao Congresso Nacional, de alguns de seus dispositivos, após audição dos “Ministérios da Justiça e das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.”
A preocupação se mostrava justificada não apenas do ponto de vista histórico – a proximidade da memória da ditadura civil-militar, cujos crimes contra a humanidade até hoje não foram apyradis e sancionados integralmente -, mas sobretudo jurídico: a Constituição Federal protege o direito de expressão, manifestação e de associação, nos incisos IX, XVI e XVII, do mesmo artigo 5º, ressalvando, porém, a proibição de manifestação e de associação para finalidade ilícita, bem como de caráter paramilitar.
3. A Lei 13260/2016 define o crime de terrorismo ao explicitar requisitos relativos a intenção, finalidade, tipos, propriamente, e exclusão taxativa.
A exclusão, correta, refere a cautela de não considerar criminosas manifestações, associações e expressões legítimas de cunho político e social.
A toda evidência, os atos que referi no início deste artigo não estão cobertos por tal excludente de criminalidade, uma vez que não se voltavam a fins lícitos: depredou-se patrimônio público, cultural, estético e histórico, ameaçou-se e praticou-se violência contra pessoas e animal, reivindicou-se a supressão do Estado Democrático de Direito e a implantação de ditadura (chamada de “intervenção militar”), com a invalidação de eleições e o retorno ao poder de um governante cujo regime se mostrara anticonstitucional, como sempre grafei, por se ter notabilizado pela prática de crimes contra o estado e contra a sociedade, contra a saúde pública, contra a humanidade, assim, entre tantos, de racismo e preconceito contra povos originários, afrodescendentes, comunidade lgbtqia+, povos periferizados, cultura e meio ambiente, ao militar ativamente contra a Constituição, recusando-se a reconhecer e a proteger direitos, a realizar deveres e a praticar políticas públicas obrigatórias.
4. Bem assim, respondo brevemente aos céticos e aos críticos da subsunção dos atos de oito de janeiro aos tipos penais do crime de terrorismo, a par de outros crimes.
1º motivo: o significado do termo “xenofobia,” referido no artigo 1º da Lei Antiterrorismo.
Qualquer bom dicionário da língua portuguesa auxiliará as pessoas encarregadas de aplicar a lei e sanará as indecisões de suas cultas intérpretes.
Xenofobia não guarda apenas seu significado etimológico de aversão ao estrangeiro – estrangeiro, aliás, que não mais é termo que se possa acolher numa ordem jurídica fundada nos direitos humanos. Xenofobia é “desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estranhas ao meio daquele que as ajuíza, ou pelo que é incomum ou vem de fora do país.” Esse incomum abrange concepções de mundo e políticas diversas.
O próprio termo estrangeiro - ξένος - era originalmente empregado para designar o que refere ideias e costumes estranhos, ignorados porque insólitos, desconhecidos, surpreendentes. Trata-se, pois, no mundo contemporâneo, de sinônimo de preconceito e discriminação.
Aqui, comparece o próximo argumento.
2º motivo: a aparente imprecisão terminológica da lei, no mesmo artigo, ao dizer de “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião.”
A lei parece considerar os substantivos xenofobia, discriminação e preconceito como sinônimos, ao aproximá-los dos especificadores raça, cor, etnia e religião. Portanto, há terrorismo se houver intenção de – enumero para que fique claro – xenofobia de raça, xenofobia de cor, xenofobia de etnia, xenofobia de religião, ou discriminação de raça, discriminação de cor, discriminação de etnia, discriminação de religião, ou preconceito de raça, preconceito de cor, preconceito de etnia, preconceito de religião.
A intenção, portanto, da prática dos atos definidos nos tipos seria, dizendo com mais precisão do que a lei, a discriminação (que a lei e o sentido comum, já dicionarizado, consideram sinônimo, como vimos, de preconceito e xenofobia). Saliento a discriminação porque, em realidade, esse é o verdadeiro objeto da descrição do requisito intencional, uma vez que discriminar é tornar manifesta a xenofobia ou o preconceito, que, teoricamente, estariam restritos a uma concepção interna, condenável, moralmente, de indivíduos (assim, xenófobos ou preconceituosos).
Se alguém pratica os atos definidos nos tipos penais, com a intenção de discriminar, comete crime de terrorismo.
Mas qual discriminação? A lei diz: de raça, cor, etnia ou religião.Dizer preconceito de raça é enunciar um pleonasmo. A mera indicação ou referência a raça – conceito biológico inexistente – é não apenas discriminar como praticar racismo. Ou seja, somente se justifica utilizar o termo raça, quando se pretende apontar a prática (discriminação) ou a concepção (xenofobia e preconceito) racista da vida social e política, imediatamente condenando tal prática e tal concepção como criminosas. Não é por outra razão que as Constituições e as Declarações de Direitos posteriores aos conflitos mundiais do Século XX passaram a enunciar o princípio da igualdade universal, salientando a questão de raça, uma vez que pretendiam combater as indecorosas leis raciais que circulavam no meio fascista das ditaduras e regimes de exceção que caracterizaram a Era do Totalitarismo, corretamente estudada por Hannah Arendt. E, acrescentaria, tentar iniciar um percurso de superação de práticas e concepções coloniais – até hoje vigentes, aliás.
Racismo, portanto, que se estende a toda uma série – que parece interminável – de relações desumanas, que geram discriminações odiosas e que, a par da referência a aparência, cor, origem, nacionalidade, costumes, culturas, gêneros, visões de mundo laicas e religiosas, buscam justificar-se em bases pseudo ou anticientíficas, ainda por meio da ameaça e da violência, em atos de ilusão, representação, conversão, exploração, opressão e julgamento.
Daí o recurso, não mais sob o ponto de vista biológico, mas agora cultural, ao termo etnia, procurando discriminar, do ponto de vista das características culturais, a simples diferença, isto é, a diversidade que é aspecto fundamental da humanidade. Do ponto de vista que aqui exponho, é igualmente pleonasmo dizer discriminação de etnias, caracterizando, em sentido amplo, a prática de racismo. Somente se justifica, pois, falar em etnia, quando se está defendendo a sociedade de uma prática discriminatória assimilada ao racismo.
A lei fala também de discriminação de cor, o que é um hipônimo de racismo, a discriminação pela aparência física.
Observo que o Supremo Tribunal Federal já considerou assimilável até mesmo ao crime de racismo a prática de homofobia e transfobia.
O dispositivo legal inclui a discriminação religiosa, afinal, como especificação cultural do ato discriminatório e das concepções xenófoba e preconceituosa, a indicar a intenção nos atos que se coadunam com os tipos penais.
3º motivo: a pretensão de restauração do regime anticonstitucional e racista pelos depredadores de oito de janeiro.
Pelo que disse até aqui, já fica evidente que os atos de oito de janeiro devem ser investigados e seus responsáveis – de executores a mandantes, financiadores, planejadores, incitadores e compartícipes em qualquer grau – processados pela prática também de crime de terrorismo.
Há, porém, um aspecto fundamental, que diz respeito à vontade manifesta dos invasores de fazer destituir um governo legitimamente eleito, diplomado e empossado, pela realização de um golpe de Estado – ou pelo implemento de uma atmosfera de violência e caos que o determinasse -, com o objetivo de endossar, reiterar as teses do regime que buscavam restaurar, de índole e característica anticonstitucional. Dentre as concepções de mundo e as práticas desse regime estavam exatamente aquele requisito intencional da Lei Antiterrorismo, que aqui explicitei: a discriminação da diversidade, característica ínsita ao humano e, por conseguinte, aos povos, em geral, e ao povo brasileiro, em particular.
5. Em conclusão, a intenção dos atos levados a cabo em oito de janeiro guardava razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
É isso que os caracteriza, ao lado de outros crimes, como atos de terrorismo.
A implicação do ex-Presidente parece evidente. Não apenas pregava a xenofobia e o preconceito, no sentido que, aqui, expus, como praticava atos de discriminação política, ideológica e cultural, contrariando frontalmente a Constituição. Lembremos que deu guarida a ato de ex-deputado, condenado no STF por pregar a invasão e agressão de seus ministros, inclusive lhe tendo concedido anistia inconstitucional. O ex-Presidente e seu gabinete de ministros usou do expediente de buscar desacreditar as instituições, mormente aquelas sediadas nos lugares depredados pelos invasores, que o louvaram e exigiam seu retorno ilegítimo e ilícito ao poder.
Diante da opinião jurídica que, no presente artigo, expresso, caberá ao Ministério Público e ao Poder Judiciário a decisão final sobre a qualificação e a autoria dos atos que lamentavelmente mancharam para sempre a história política do Brasil.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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