Janaína Paschoal e a manifestação democrática dos estudantes: Temos Constituição. Sabemos disso?
Quem protagoniza e prega a antidemocracia não pode continuar a participar do espaço e do tempo da democracia.
2023 era para ser um ano realmente novo. Mas ainda não começou. Muita coisa está segurando sua arrancada, assim como – não por mera coincidência – o andar do novo Governo Democrático que elegemos.
Pode ser mera impressão, determinada pelo fato de que tínhamos muita expectativa de mudança, em decorrência do resultado da eleição. Achávamos que a página seria virada e que viveríamos um tempo de renovação automático. Mas isso não ocorreu Por quê?
Gostaria de refletir sobre isso, usando um exemplo tirado do noticiário da semana. Uma professora está retomando seu trabalho em importante universidade brasileira, após quatro anos de afastamento para exercer o mandato de deputada estadual. Estudantes, representados pelo tradicional Centro Acadêmico XI de Agosto, manifestaram-se, dizendo que ela não era mais bem-vinda, porque a Universidade de São Paulo havia se transformado e ficado muito grande para essa professora, que lhes causaria mal-estar sua presença e atividade na docência. Ex-Diretor da Faculdade em que a professora leciona escreveu artigo, contestando a manifestação estudantil, salientando o pluralismo que marcaria a história da instituição, em relação ao qual seria incompatível a proibição de seu exercício profissional. Sendo secundado pela atual Direção da Faculdade de Direito e por outros Professores e Professoras de alguns dos importantes Departamentos da São Francisco. A professora criticou estudantes, que, por sua vez, reiteraram sua expressão de descontentamento, afirmando que seria preciso ser intolerante com o intolerante.
Posso prever que esse debate não vai cessar nunca. Seja porque essa infinitude das questões a que não se concede solução é típica de nossa cultura de impasses políticos e de recusa de enfrentamento das questões até as últimas consequências. Seja, ainda, porque a professora – com o perdão do trocadilho, deverá penar para retomar a confiança do corpo discente – como demonstram casos antigos e novos de sua incompatibilidade com membros determinados do corpo docente.
Há, por exemplo, o caso do professor que, em 2014, resolveu depositar em cartório sua declaração de amor pela ditadura civil-militar (chamada, estranhamente, de “movimento” – sic – por um ministro do STF) e passou a ser recebido em sala de aula com tambores, batucadas e discursos de estudantes que resolveram – a meu ver, corretamente (veja-se este artigo, que publiquei na Folha/Uol – passar a ele e à sociedade a clara mensagem de que ir contra a democracia não é tolerável, sobretudo quando essa postura é levada por um professor à sala de aula. Outra manifestação, mais antiga, foi a de estudantes que fizeram preencher todos os espaços da sala de aula com latas de marmelada, para dizer que metáfora seria cabível para o concurso público que havia alçado determinado professor à titularidade da disciplina de direito romano, de cujo resultado discordavam.
Essas e outras histórias vão migrando, aos poucos, para o campo do folclore das Arcadas. Rimos, hoje, mas não podemos esquecer de outras casos de conflito, testemunhas de que a história dessa e de tantas outras instituições de ensino brasileiras estão permeadas de atos que – diferentemente dessas manifestações estudantis – apontam para a dificuldade de se afirmar o caráter pluralista dessas mesmas instituições: docentes e discentes que colaboraram com ditaduras, que apoiaram ou participaram de atos antidemocráticos, que escreveram e falaram contra as liberdades civis, de um lado; e docentes e discentes que foram perseguidos por ditaduras , exilados, presos, torturados, mortos.
A par disso, o Centro Acadêmico XI de Agosto acrescentou uma importante informação histórica, em sua recente manifestação: o pluralismo nunca existiu nem de fato nem de direito, pois o povo, em sua diversidade, não teve acesso, a não ser excepcionalmente, ao território do ensino superior. No Brasil, havendo uma legião de excluídos e uma miríade de injustiças, como dá exemplo o fato de o grande escritor, jornalista, filósofo, escritor, ativista político, líder abolicionista, jurista e advogado de escravos Luiz Gama somente ter recebido reconhecimento e diploma que merecia, bem mais de cem anos após seu falecimento, em 1852. Recusaram o ingresso do jovem pobre e negro no curso de Direito, mas ele seguiu nos corredores da Faculdade, ajudado por alguns estudantes, dos quais descendem, por sua coragem e seu apego à igualdade, liberdade e solidariedade, aqueles que hoje marcam posição diante do retorno da professora.
Não digo que, no plano ideal – portanto, longe do que foi e, em certo sentido, apesar das cotas e outras políticas afirmativas, ainda é a instituição universitária brasileira – professores e professoras que se manifestaram contra os estudantes não estejam certos, mesmo que parcialmente: há um dever e um direito de liberdade de cátedra, assim como de pluralidade democrática, aberta a divergências de opinião e de posicionamento político de docentes e discentes. É importante salientar que as professoras e os professores que se manifestaram, além de excelentes profissionais do direito que são, primam pelo comportamento e pela expressão democráticos – todos e todas tendo sido, inclusive, protagonistas de importantes atos de resistência contra o regime - que chamei de anticonstitucional - que esteve no poder até o fim de 2022, e que contava com a adesão da professora que ora retoma sua função na Faculdade.
Entretanto, do ponto de vista não apenas histórico e social, mas igualmente político e jurídico-constitucional, a razão está com estudantes. O espaço público não pode tolerar a presença daqueles que falam e agem contra a própria configuração jurídico-política da vida comum, ou seja, não aceita e não pode aceitar os que praticam discursos e ações anticonstitucionais. A tolerância, afirma a Constituição, depende da adesão ao regime do Estado Democrático de Direito. A sociedade jurídico-política é o resultado da palavra e da ação, configuradas e marcadas pela diversidade que é ínsita à própria existência e liberdade de cidadãs e cidadãos. Cidadania é o pertencimento ao espaço público, em que direitos e deveres são exercitados, em meio a um debate aberto e plural de ideias, desejos e projetos de vida comum. Contudo, a cidadania não aceita o discurso e a prática que a negam: o elogio e a adesão a um regime anticidadania.
Tenho ressaltado, desde o início de minhas manifestações de resistência e afirmação jurídico-políticas contra o regime que se instalou no Brasil, esse prefixo “anti-.“ Ele não se confunde com o prefixo de uso comum no direito, o “in-.“ A prática de inconstitucionalidades e a sua teoria se tornaram, lamentavelmente, naturalizados, no Brasil. A ponto de um outro ministro do STF ter grafado a estranha expressão “estado de inconstitucionalidade,” isto é, acolhendo no vocabulário do direito uma monstruosidade, que é a permanente infringência à Constituição. Fica pomposo o termo na página de um livro ou de uma decisão judicial. Mas não devemos esquecer que a sua realidade é a de prejudicar a vida e os direitos mais básicos de muita gente, que se submete a esse estado de abuso e de espoliação de garantias.
Mas o anticonstitucional é diferente e mais sério. Trata-se não apenas de atentar contra a Constituição, mas sobretudo de o fazer de modo proposital, estabelecer mesmo um comportamento militante contra os direitos, deveres e políticas públicas que ela determina em seu texto.
A inconstitucionalidade merece um reconhecimento por decisão de autoridade pública e uma determinação de correção, para restauração da integridade da carta político-jurídica. Há processos específicos para proteger a Constituição e aquilo que determina, que seguem seu curso – não isento de muitos obstáculos – nos tribunais e juízos brasileiros. A inconstitucionalidade se corrige no interior do direito e da sociedade política.
A anticonstitucionalidade é, ao contrário, estado antipolítico e antijurídico, que deseja se impor pela força contra o direito e contra a sociedade política. Uma palavra ou um ato anticonstitucionais não são jurídicos nem políticos, mas, antipolíticos e antijurídicos. Estão voltados a destruir a estrutura político-jurídica da sociedade. Não podem ter lugar no espaço da política e do direito, na esfera pública. Aqueles que são agentes da antipolítica e do antidireito – arquitetos e agentes do regime anticonstitucional – não podem ser tolerados no espaço público. Isso, aliás, é uma lição antiga da democracia, que permitia ao povo, reunido em assembleia, votar a exclusão do espaço e do tempo da política daquelas pessoas que atentavam contra a existência da democracia – que era e deve voltar a ser sinônimo de política e de direito –, por meio do ostracismo. Quem protagoniza e prega a antidemocracia não pode continuar a participar do espaço e do tempo da democracia.
Isso não quer dizer que não possa continuar a agir na esfera privada, com liberdade e plenos direitos – desde, é claro, que não venha a ser condenado pela prática do que, hoje, o direito brasileiro chama propriamente de crime contra o estado democrático de direito. Mas não pode participar da vida das instituições públicas, propagar suas ideias anticonstitucionais e realizar seus atos anticonstitucionais no espaço e no tempo que devem ser preservados para o exercício plural e legítimo da política e da justiça. Espaço e tempo de inclusão, de tolerância, de cuidado, de igualdade, de liberdade, de construção de vínculos e de livre curso de debates sobre projetos e desejos em relação ao viver comum.
Estudantes, portanto, têm direito de dizer quem gostariam de ter como professores e professoras. Podem marcar sua posição.
Não podem, é claro, proibir o exercício profissional de ninguém que legitimamente ostente o título de docente, cuja exclusão ou vedação dependem de um processo legítimo, em que garantias fundamentais de defesa são exercidas e devem ser protegidas com absoluto rigor.
Basta ler a manifestação do Centro Acadêmico para notar com clareza que não há nenhuma pretensão de proibir. Estudantes manifestam democraticamente sua opinião e o que sentem. Não requerem proibição nem exclusão. É tipicamente uma expressão legítima da política e do direito, dentro daquilo que a Constituição prevê e preserva. Sequer há ofensa. Pois o que se diz é discordar das posições da professora, que ela, inclusive, pode desejar sustentar e explicar diante do corpo docente e discente da Universidade. Por exemplo, pode explicar porque escreveu no Twitter que “Se o Sr não parar com essas postagens, os militares vão para a rua para retirar o Sr, com base no artigo 142 da Constituição Federal…” (sic, em https://twitter.com/JanainaDoBrasil/status/1245718987830419456), esclarecendo sua interpretação do artigo 142 e se considera a existência de uma prerrogativa militar ir para a rua retirar o Presidente da República. Esse esclarecimento seria fundamental, para entendermos com um pouco mais de clareza qual o conteúdo antijurídico que alimentava a atuação de pessoas que cometiam crime contra a Paz Pública ou até contra o Estado Democrático de Direito, ao se manifestarem em volta de quartéis por “intervenção militar” (segundo afirma o artigo 286, parágrafo único, do Código Penal, especificamente), ou que realizaram os atos de invasão e destruição do dia 8 de janeiro. Havia uma expectativa de que o artigo 142 pudesse ser invocado? Quem seria responsável por essa expectativa? Quem teria pregado a possibilidade de tal atuação – evidentemente antijurídica? Que tipo de sanção, se alguma, deve sofrer quem pregou tal tese anticonstitucional? De natureza moral ou jurídico-administrativa, civil ou penal, em último caso?
Muito bem, para que o ano de 2023 se inicie e para que o regime constitucional volte a imperar no Brasil há necessidade de nos desvencilharmos de obstáculos sérios à construção democrática em nosso País.
Estamos diante da oportunidade desse debate sério. Estudantes e jovens brasileiros e brasileiras nos oferecem essa chance de iniciarmos um caminho novo. Que esse percurso, assim como o Novo Ano e o Novo regime Democrático, seja feliz para todas e todos!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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