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Paulo Moreira Leite

Colunista e comentarista na TV 247

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Incêndio expõe a enorme dívida do país com o gênio Zé Celso

Zé Celso foi o maestro capaz de acender uma luz inspirada e grandiosa num período particularmente difícil - a ditadura militar

Zé Celso (Foto: Reprodução (Globo))

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Vítima de um incêndio doméstico, nos últimos dias o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, 86 anos, tem enfrentado o mais difícil papel de sua existência, ilustrada por um conjunto de espetáculos inesquecíveis do teatro brasileiro.

Morador de um apartamento localizado no Bixiga, bairro onde famílias de classe de origem europeia convivem com imigrantes das regiões mais pobres do país, sem falar nos pretos e pretas do glorioso talento Vai-Vai, ali Zé Celso reside ao lado do marido, outros dois moradores, mais um cachorro.

Com queimaduras pela metade do corpo, ele permanece internado em estado grave, como vítima ilustre de um incidente doméstico que seria simples banalidade cotidiana se não envolvesse um personagem tão grandioso e influente, com vários momentos de genialidade comprovada na biografia.

Num país frequentemente à deriva diante de seus desastres políticos e derrotas culturais, Zé Celso foi o maestro capaz de acender uma luz inspirada e grandiosa num período particularmente difícil - a ditadura militar.

Quando a máquina de propaganda do milagre tentava esconder a miséria da vida real, o pensamento crítico sangrava nas tesouras da Censura e o povo gemia no porão da tortura, ele transformou o teatro Oficina em uma usina de coragem, ideias claras, criatividade irresistível e vontade de luta.

Os diálogos e gestos exibidos no palco conversavam com aflições e dores que nos acompanhavam na vida real. Ajudavam várias gerações de brasileiras e brasileiros a repensar seus projetos de vida e de país, a enfrentar as dores e alegrias de todas as horas.

Quem teve o privilégio de assistir aos espetáculos de Zé Celso no Oficina, quando cada indivíduo era lealmente convocado a empenhar a própria consciência e sensibilidade, sempre irá lembrar a energia contagiante de diálogos travados no ritmo correto e na entonação adequada, os gestos grandiosos - ou diminuídos - na medida certa. Falar em teatro engajado, ali, é pouco.

Quando o espetáculo terminava, todos iam embora com a certeza de que haviam atravessado uma experiência incomparável, carregando lições e descobertas que permaneceriam na memória por anos a fio. A peça podia ter acabado, mas uma nova fase na existência de cada um só estava começando - com sonhos, emoções e verdades recém-descobertos, presentes nos diálogos e gestos desses seres duplos, atores/personagens, sob comando de um personagem presente mas invisível, o próprio diretor.

Dos grandes espetáculos que assisti, dois permanecem vivos na memória. Rei da Vela, de Oswald de Andrade, onde um inesquecível Renato Borghi dava aulas de expressão corporal para sinalizar as ambiguidades de um burguês de São Paulo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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