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Marcelo Zero

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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Fatos e narrativas sobre a Venezuela

Qual a melhor maneira de propugnar pela democracia e direitos humanos? Pela via das intervenções e das sanções, ou pela pacífica das negociações e cooperação?

Presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Twitter/NicolasMaduro)

A reunião convocada por Lula com as lideranças do subcontinente era para ser vista como o pontapé inicial da retomada das articulações para promover a imprescindível integração dos países da América do Sul, totalmente abandonada pelos governos de direita da região.

Transformou-se, porém, num foro midiático para criticar a Venezuela e a posição do anfitrião.  

Disseram que a Venezuela é uma “ditadura” e que isso não é “narrativa”. É fato. Criticaram Lula porque recebeu bem o Chefe de Estado da Venezuela e porque afirmou que Maduro precisa construir uma narrativa para se contrapor à “satanização” de seu governo.

Dessa forma, a nossa mídia afirmou, quase em uníssono, que a “narrativa” que vem dos EUA e da Europa sobre o regime chavista é inteiramente correta e espelha fielmente os fatos.

Será? Vamos aos fatos.

A Venezuela tem problemas relativos ao seu regime político e em relação aos direitos humanos? Tem.  

Mas, assim como a Venezuela tem, a grande maioria dos países do mundo também tem, em maior ou menor grau.

É o que diz a “narrativa” de órgãos muito conservadores, como a revista The Economist, por exemplo.   

Com efeito, no último Democracy Index, elaborado, em 2022, pela The Economist Intelligence Unity (EIU), são registradas algumas avaliações inquietantes.

Segundo essa publicação, somente 24 países do mundo, entre os 167 pesquisados, seriam “democracias plenas” (full democracies). O resto se divide entre as categorias de “democracias imperfeitas” ou falhas (flawed democracies), “regimes híbridos” (hybrid regimes) e “regimes autoritários” (authoritarian regimes). O Brasil, observe-se, não entra na lista das democracias plenas.

Conforme a The Economist, a maior parte da população do planeta não vive em democracia. Noventa e cinco países, que somam quase 55% da população do globo vivem em regimes “híbridos” ou “autoritários”, como seria o da Venezuela, conforme a publicação. Na África, no Oriente Médio e no resto da Ásia, as democracias, mesmo as imperfeitas, seriam raras exceções. Na América Latina, as “democracias plenas” se circunscreveriam ao Uruguai, Chile e Costa Rica.   

Por conseguinte, caso fôssemos nos relacionar somente com países considerados democráticos, segundos os padrões impostos pelo “Ocidente”, nossa diplomacia teria de se circunscrever a poucas nações do mundo. Teríamos de dar adeus, por exemplo, a qualquer protagonismo significativo na África e no Oriente Médio. Fato incontestável.

Mas a questão fundamental a respeito da questão democrática na Venezuela tange ao fato inegável de que ela não pode ser entendida sem uma análise das circunstâncias históricas que a levaram à situação atual.

O regime chavista foi, desde o início, acossado de todas as formas pelas oligarquias locais, com o apoio decidido dos EUA e de vários países europeus.

Em 2002, Chávez sofreu um golpe de Estado. Fato. Esteve muito perto de ser morto. Esse golpe teve o apoio claro dos EUA, o que mereceu crítica iracunda de vários intelectuais norte-americanos de renome, como Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia. Fatos já históricos.  

No Brasil, os mesmos meios que hoje se contorcem de ódio com a “ditadura” de Maduro, ou aplaudiram ou não condenaram golpe.  Não é narrativa. É fato.  

Diga-se de passagem, esses meios também apoiaram a ditadura militar brasileira, a ditadura chilena de Pinochet, a ditadura argentina, o golpe (sim!) contra Dilma Rousseff, o golpe contra Fernando Lugo, a condenação e prisão, sem provas, de Lula etc. etc. A lista desse “compromisso com a democracia” é interminável. Fato.

Não convém fazer um longo histórico da crise venezuelana, mas é preciso observar que, com a morte de Chávez, em 2013, a oposição radicalizada da Venezuela considerou que poderia derrotar facilmente o sucessor na revolução bolivariana.   

Entretanto, a vitória de Maduro sobre Capriles, ainda que por pequena margem, em eleições limpas, frustrou as expectativas da oposição.   

Pouco tempo depois, os setores mais radicalizados da oposição venezuelana, liderados por Leopoldo López, iniciaram o processo denominado de “la salida”, que consistia na utilização de manifestações violentas de rua, com a formação de barricadas, as chamadas “guarimbas”, incêndio de edifícios públicos e até mesmo de atos terroristas com o intuito de derrubar o governo eleito.  

Tratava-se de uma estratégia que teve êxito na chamada “revolução colorida da Ucrânia”, estimulada, sim, pelos EUA.

Concomitantemente, foi iniciado um processo econômico que visava produzir carestia, desabastecimento e inflação, tal com o ocorreu, por exemplo, no Chile de Allende ou mesmo na própria Venezuela dos anos 2002 e 2003.

Investiu-se na polarização exacerbada e até mesmo no abandono dos mecanismos democráticos de oposição. Assim, boa parte das forças de oposição venezuelanas se recusou a participar de eleições.

A situação político-econômica, que já era difícil, passou a se degradar muito com a queda dos preços do petróleo. Entre 2012 e 2016, o preço internacional do barril de petróleo caiu de US$ 102 para US$ 36.  Para um país no qual o petróleo respondia por 90% do valor das exportações e por mais da metade da receita fiscal, tal queda teve um impacto enorme.

Contudo, a situação saiu do controle quando os EUA e a Europa passaram a impor sanções draconianas contra a Venezuela, a partir de 2017.

Muitos “especialistas” argumentam, hoje, que essas sanções não tiveram e não têm muito impacto na crise venezuelana e que a crise foi ocasionada exclusivamente pela “gastança” e pela “incompetência” de Maduro. Essa narrativa é falsa.

Produção de Petróleo da Venezuela

tabela
Elaboração: Francisco Rodríguez; Fonte OPEP


Este gráfico, elaborado pelo pesquisador Francisco Rodríguez, da Universidade de Denver, ilustra bem a história. Há uma primeira queda na produção, entre o final de 2015 e o início de 2017, devido à baixa nos preços mundiais do óleo.  

Não obstante, a partir de 2017, quando os preços de petróleo começam a subir de novo e os países da OPEP iniciam a sua recuperação econômica, a Venezuela, em contraste, tem uma queda contínua e acentuada da sua produção e receitas.

Tal nova queda foi ocasionada, sim, pelas sucessivas sanções. Em primeiro lugar, houve as sanções financeiras, que impediram a Venezuela de transacionar mundialmente e que até mesmo congelaram suas reservas internacionais. Em segundo lugar, em momento posterior, ocorreram as sanções petroleiras, que reduziram fortemente a possibilidade de a Venezuela exportar sua produção. E, em um terceiro momento, se verificaram as sanções contra sócios estrangeiros que tinham ajudado a Venezuela a vender sua produção de petróleo.

Como consequência, ao final desse processo, a renda petroleira da Venezuela, vital para sua sobrevivência, havia caído 93%. Dos mais de 50 mil poços de petróleo que estavam em operação, cerca de 30 mil foram paralisados. Mesmo os que continuaram operando, reduziram sua produção.

Não surpreende, portanto, o grande número de refugiados venezuelanos e a grave crise socioeconômica daquele país, agora abrandada pelo levantamento parcial de algumas sanções. Do ponto de vista político, a situação, felizmente, também melhorou. Há frutíferas negociações em curso entre o governo e a oposição da Venezuela, apoiadas pelo Brasil.  

Ninguém mais aposta no antigo governo fictício de Guaidó, como fez Bolsonaro. Um governo só de narrativas e sem fatos.

O ponto essencial, porém, em todo esse debate é: qual a melhor maneira de propugnar pela democracia e os direitos humanos no cenário mundial? Pela via violenta, e frequentemente seletiva e hipócrita, do isolamento, das intervenções militares e políticas e das sanções econômicas e comerciais, que provocam tragédias humanitárias terríveis, ou pela pacífica das negociações e da cooperação, respeitado o princípio da não intervenção?

Historicamente, a diplomacia brasileira tem apostado, de forma acertada, nessa última via.   

Lula, quando realizou esse último encontro de presidentes da América do Sul, e convidou Maduro (e também chefes de Estado de direita) apostou justamente nessa via. Também apostou na construção de um entorno regional integrado, pacífico e próspero, independentemente das circunstâncias políticas dos distintos governos de plantão.

As “disputas de narrativas”, inevitáveis no mundo político, não podem ocultar uma verdade fundamental: a pior paz será sempre muito melhor que qualquer guerra; e as negociações, por mais difíceis que sejam, serão sempre preferíveis a sanções ou intervenções. Fato.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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