HOME > blog

Exu e Marx precisam se deglutir

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Alguns acontecimentos recentes ou um pouco mais antigos têm suscitado debates calorosos entre os chamados identitários e marxistas. De um lado encontramos aqueles que defendem que a luta política reúna os que possuem um conjunto de características e particularidades que têm o intuito de definir algo ou alguém, uma identidade que marca a diferenciação entre pessoas ou grupos e os outros. De outro lado agrupam-se aqueles que defendem que a luta política deve se concentrar nas questões de classe, na luta de classes entre trabalhadores e burguesia.

Circula na internet o vídeo do programa Mulher com a Palavra no qual quatro intelectuais feministas negras discutem a questão feminista segundo uma abordagem da mulher negra. Em determinado momento, uma delas faz a defesa metodológica e epistêmica da interseccionalidade e a define como “uma encruzilhada para Exu nunca mais comer marxismo”. Se a interseccionalidade pode ser interpretada como uma categoria epistemológica que analisa os fenômenos sociais a partir de múltiplos sistemas de opressão, articulando, por exemplo, gênero, raça e classe social, uma análise marxista também utiliza várias categorias analíticas interrelacionadas para demonstrar a luta de classes como o motor da história e não pode ser descartada por aqueles que lutam contra a dominação que, no fundo, exerce-se na conjuntura histórica capitalista. No fundo, a análise marxista também é interseccional.

Recentemente a editora do Esquerda Diário, Letícia Parks, sentiu-se ofendida pela filósofa Djamila Ribeiro que em uma live com o Deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL/RJ) desqualificou uma crítica sua de cunho esquerdista,  referindo-se à jornalista como "garota clarinha de turbante" e acusou-a de divulgar notícias falsas a respeito dela, Djamila. Freixo apoiou Djamila e acusou Letícia de utilizar táticas bolsonaristas. Letícia afirmou não ter obtido direito de resposta às acusações contra ela. Ao chamar a jornalista de “garota clarinha de turbante”, a filósofa procurou desqualificar as críticas de duas maneiras. Em primeiro lugar, “infantilizando” a jornalista ao chamá-la de “garota”. Em segundo lugar, quando ela referiu-se à Letícia como “clarinha”, desqualificou-a enquanto negra, desconsiderando seu “lugar de fala” e, por extensão, acusou-a de apropriação cultural por ser “clarinha” e utilizar um turbante, elemento considerado como de origem africana que seria de uso proibido por aqueles que negros não são.

Por último, o caso mais recente da historiadora e antropóloga professora da USP que publicou uma coluna fazendo uma crítica ao último filme estrelado pela cantora estadunidense Beyoncé. Segundo a professora, Beyoncé teria errado ao “glamourizar negritude com estampa de oncinha”. Diversas críticas identitárias foram produzidas contra a historiadora, bem como artigos em sua defesa. Foi proposto seu “cancelamento” pelos mais radicais.

Setores da esquerda tratam as questões identitárias como secundárias. Para eles, as análises identitárias desviam a atenção do fundamental que é a luta de classes. Existem os mais radicais que afirmam que as questões feministas, étnicas, raciais e de gênero serão resolvidas com a revolução socialista.

O que nós vemos em todos esses casos e em diversos outros aqui não tratados é uma enorme dificuldade de segmentos dos dois lados, identitários e marxistas, dialogarem de maneira democrática. Como resultado assistimos ao “cancelamento” do debate democrático em favor das particularidades. Cada um só pode falar a partir do seu “lugar de fala”. Só quem pode falar de gênero são as mulheres e as pessoas LGBTQI+, só quem pode falar de racismo são os negros e por aí vai. O problema maior desta postura é que os lugares de fala são infinitos e se os levarmos ao pé da letra entraremos em subdivisões infindáveis que farão com que só as mulheres negras de classe média possam falar por elas, só as mulheres negras pobres possam falar por elas, só as mulheres brancas pobres possam falar por elas... Teremos uma infinita quantidade de feminismos, de críticas ao racismo, de críticas à lgbtfobia numa divisão que permitirá que a dominação falocêntrica-patriarcal capitalista se perpetue para sempre, na falta de estratégias diferentes mas convergentes que solapem o poder hegemônico. Estas estratégias deveriam se sustentar necessariamente na crítica identitária, bem como na crítica marxista à sociedade capitalista. As duas questões precisriam caminhar juntas, concomitantes. Não é mais plausível exigir que grupos subalternizados, não hegemônicos tenham paciência porque um dia, sabe-se lá quando, a revolução socialista virá e resolverá todos os problemas étnicos, raciais e de gênero. Quem sofre discriminações e violências cotidianamente demanda soluções urgentes. Estas são construídas no embate diário contra a sociedade excludente.

Por outro lado, as questões identitárias apartadas da luta de classes tendem a gerar práticas sociais e políticas que reforçam a dominação burguesa e a legitimam porque a ideologia da sociedade burguesa enfatizará que o capitalismo é tão bom que nele mesmo mulheres, negros, pessoas LGBTQI+ podem almejar e alcançar posições que gozem de status social elevado e poder na sociedade capitalista. Desta maneira, a sociedade falocêntrica-patriarcal capitalista continuará existindo, as desigualdades sociais e econômicas continuarão a existir. O diferencial será que a dominação não será mais exercida apenas por machos brancos heteros ricos porque parte dos dominados também participará desta estrutura de poder e controle, exercendo seu domínio tal como socialmente definido pelos machos brancos heteros sobre aqueles que compartilham da mesma identidade dos “novos” dominantes.

As eleições presidenciais estadunidenses de 2020 estão colocando esta questão claramente. O candidato democrata à presidência, Joe Biden, escolheu como companheira e chapa Kamala Harris, senadora democrata pela Califórnia. Com esta escolha, os democratas esperam atrair os votos de duas comunidades não hegemônicas que são os negros e as mulheres. Contudo, setores de esquerda a consideram como uma candidata do establishment porque antes de ser senadora ela foi eleita procuradora-geral da Califórnia e, durante seu mandato, o número de negros encarcerados neste estado teria aumentado muito e ela teria contribuído fortemente para isto. Esta forma de atuação seria consequência de uma postura identitária liberal que não questiona as estruturas de dominação e restringe sua atuação à criação de estratégias que propiciem a alternância nos cargos de poder entre homens, mulheres, negros e outros segmentos sociais subalternizados. 

Estas questões vêm sendo discutidas por autores que conseguem transitar entre identitarismo e marxismo tais como Nancy Fraser e Angela Davis. Nancy Fraser publicou um artigo denominado Como o feminismo se tornou a empregada do capitalismo – e como resgatá-lo no qual critica as posições feministas liberais puramente identitárias e tem publicado críticas radicais à sociedade capitalista. Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis discute como fundamental a análise da intersecção de raça, classe e gênero na luta por um novo modelo de sociedade.

Autores como Franz Fanon, Jones Manoel e Asaid Haider mostram como a questão racial e o marxismo podem trabalhar juntos na crítica à sociedade capitalista. Em suas obras eles desenvolvem análises e propõem estratégias que conscientizem os trabalhadores e organizem a luta de classes na busca por uma sociedade igualitária onde a dominação econômica, racial e de gênero seja superada e suprimida. 

Se a revolução socialista é um processo histórico e dialético que se urde no e durante seu próprio desenrolar, as lutas identitárias e a luta de classes são partes desse processo. As divergências e os debates deveriam ser estimulados e não reprimidos. O “cancelamento” dos debatedores é reacionário e próprio das classes dominantes da sociedade capitalista para as quais o debate não interessa. Reproduzir procedimentos autoritários entre aqueles que lutam pelo fim da dominação é reproduzir e legitimar a dominação.

Não importa se o dominador tem pênis ou vagina. Não importa a cor da sua pele. Se ele exerce seu domínio e seu poder deve ser considerado como o inimigo a ser derrotado. Mas não adianta derrotar os grupos dominantes e preservar todo o sistema e modo de produção que legitima seu domínio. Sua derrota será muito mais eficaz e radical se Marx e Exu deglutirem-se - no sentido que Oswald de Andrade deu a este termo - na encruzilhada interseccional e estabelecerem estratégias conjuntas contra o inimigo comum.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: