Crônica do exílio
Ao falar do meu retorno, a primeira pessoa que me vem à mente é Marielle Franco, que não pode voltar
Eu acompanhei a criação do Jardim Marielle Franco em Paris. Quando os pais de Marielle vieram para a inauguração em 2019 eu morava muito perto do Jardim que fica entre duas estações de trem bem importantes. A minha casa era numa espécie de residência para artistas e professores estrangeiros e acabamos indo depois da inauguração para o pátio dessa residência, pois não havia nenhum restaurante que comportasse aquelas 20 pessoas. Era necessário comer, mas eu não havia planejado um jantar e, naquele dia, não havia comida no meu apartamento. Nesse lugar, eu passei o pior verão da minha vida, na mais horrível das canículas, quando a sensação térmica chegou a 60 graus Celsius. Para descrever isso, devo apenas dizer que a água que sai das torneiras é quente e evapora em segundos. Você pode encher um copo e assisti-lo evaporar em pouco tempo. Não há ar condicionado em Paris. Quando há calor, a prefeitura lança um alerta vermelho e ninguém sai de casa, sendo que, em casa, é preciso deixar as janelas fechadas e umedecer o que for possível para amenizar efeitos. Nessas condições, há milhares de pessoas que morrem pelo calor, assim como no Brasil há milhares de pessoas que morrem pelo frio. Na França, com seu Estado de bem-estar social que resiste ao avanço do neoliberalismo, há muito mais assistência para as pessoas. O que apenas prova que precisamos de mais Estado de bem-estar social também no Brasil.
Naquela noite, me lancei no milagre da multiplicação dos dois pacotes de macarrão que havia em casa. Dois dos meus melhores amigos apareceram naquela noite: Paula que é chefe de cozinha veio me ajudar a cozinhar, mas a cozinha era um fogão de duas bocas colado numa pia sobre uma geladeirazinha e três pessoas – sendo que uma era chef – era gente demais para a pequena panela na qual eu deveria tornar saboroso um extrato de tomate pronto e um queijo ralado de pacotinho. Enquanto descascava o alho, eu a expulsei da cozinha, junto com o Murilo, mas como ela é generosa, fez muitos jantares para mim depois e eu fiquei com uma eterna vergonha do meu gesto de quando nos conhecemos. Marinete, mãe de Marielle, é a pessoa mais gentil do mundo e me disse que foi o melhor macarrão da vida dela. Seu Antônio concordou e agradeceu muito e eu, que aprendi o valor das gentilezas ao longo da vida, me deixei levar pela onda de amor. A ausência de Marielle ficava mais forte e eu afundava a cada dia mais no estupor.
Ao falar do meu retorno, a primeira pessoa que me vem à mente é Marielle Franco, que não pode voltar porque foi assassinada por grupos de extermínio em 2018, ano da intervenção militar no Rio e da ascensão fascista que levou Bolsonaro à presidência da República. Que os assassinos de Marielle estivessem na casa do próprio Bolsonaro em 14 de março de 2018 não é mera coincidência. A pergunta que ainda não conseguimos responder é: qual a relação de Bolsonaro com a morte de Marielle?
Agora que estou em solo brasileiro, penso em Marielle que não pode voltar.
Depois de meses tentando, pelo menos desde a vitória de Lula quando tudo prometia melhorar, eu pude voltar com o apoio do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos que foi praticamente destruído com todo o ministério dos Direitos Humanos pela ex-ministra bolsonarista que ocupava a pasta misturada com o ministério das mulheres para destruir tudo de uma só vez.
De fato, tudo melhorou quando comparado ao terror fascista, embora o fascismo esteja aí, presente e esperando para voltar à cena com a força do espetáculo, tal como protagonizado por Bolsonaro tornado inelegível no mesmo dia em que eu e Jean Wyllys pisamos em solo brasileiro.
Fiquei fora de 18 de dezembro de 2018, até 30 de junho de 2023. Lá fora, fui percebendo aos poucos que eu havia entrado em exílio. O exílio foi uma heteronomeação. O que era para ser um tempo fora para reorganizar a vida, se transformou em exílio. Eu não sabia o que fazer com esse nome. Era chamada a falar a partir dessa palavra e sempre me sentia perdida. Demorei a entender o não-lugar. Escrevendo com Jean “O que não se pode dizer – experiências do exílio” (Civilização Brasileira, 2022), eu consegui elaborar uma parte.
O exilado, aquele que é expulso de seu país, é sempre um sobrevivente. Ele é sempre a testemunha de muita coisa que seria preciso relatar aos poucos, quando se tem a sorte de poder elaborar o vivido por ter acesso a meios. Escrever é preciso.
Constatei que eu fazia parte de grupos de exilados que vinham de países como o meu, com democracias destruídas.
O meu medo passou a ser o de que meu caso excepcional, no futuro, se tornasse a regra. Há exilados fora do país, há muitos mais dentro. São mulheres, pessoas LGBTQIA+ e homens que tiveram que fugir, que recebem ou não proteção legal e que, sendo perseguidos e ameaçados, tem o seu direito de estar presente cerceado.
Em 2018, um deputado de extrema-direita do MBL (cujo nome não quero dizer, pois já está em declínio e é melhor deixar cair), que ainda não era deputado, disse que seria muito divertido me tirar de todos os debates no Brasil. Embora ele faça parte da geração digital, e inclusive das milícias digitais que operam com fake News e desinformação, parecia não estar atualizado para o fato de que a Internet criou um outro mundo do qual todos podemos participar desde que tenhamos acesso. Há muito debate a ser feito sobre isso em nível jurídico, cultural e educacional, mas é um fato que a internet gera uma forma de vida em que operamos por simulação (como se estivéssemos presentes), na espectralidade.
Eu segui exilada de corpo, mas não de alma.
Voltar ao Brasil me permite juntar essas duas partes e ser novamente uma pessoa inteira. E esse é um direito humano, mais do que um privilégio.
Que Marielle não possa voltar diz muito sobre o país que nos tornamos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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