Zé Celso

Exemplo de Zé Celso Martinez Corrêa é desafio para a política cultural do país

A morte de Zé Celso e seu legado são, antes de tudo, um testemunho a interpelar o país. Mais do que uma possibilidade, a nação deve encará-lo como uma responsabilidade

A morte trágica de José Celso Martinez Corrêa, além de privar o país de seu maior talento de criação teatral, põe em evidência temas urgentes para a definição dos contornos mais precisos de valores maiores para uma política cultural para o país.  

Reconhecido por sua personalidade incandescente, contracenando sempre, no palco e na vida, Zé Celso recusava-se a ceder às inibições e timidezes do ego. Fazia-o mais por amor à sua arte e, acima de tudo, por imenso apreço ao Brasil. É preciso registrar e extrapolar essas características.

Também por esse compromisso, de cunho nacionalista, sua trajetória no comando dos vários momentos do grupo Oficina foi deixando uma obra extensa, multifacetada, que se nivela - e às vezes supera – a de alguns dos mais renomados encenadores do mundo. 

Ainda que várias vezes baseada também em autores estrangeiros, essa produção tem uma marca original, profunda e amorosamente brasileira, penetrada no seu amor pela cultura nacional, pelas conjunturas e os tipos populares brasileiros.

Para além da comoção e das homenagens sempre insuficientes ao gênio, muitas vezes marginalizado, do bairro do Bixiga, cumpre levar em conta o que o legado do trabalho, dos escritos e da personalidade de Zé Celso podem representar como norte para uma política cultural para o Brasil, pelo que eles expressam de crença num país soberano, inventivo, altaneiro, capaz de devorar múltiplas culturas enquanto absorve as demandas mais atuais do meio ambiente, da tecnologia e da inclusão. 

Zé Celso nutria simpatias entusiasmadas por líderes e pensadores como Getúlio, Oswald de Andrade, Juscelino, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Brizola, Darcy Ribeiro e, last but not least, Lula. Muitas de suas referências iam além dos temas da arte. Transcendiam para a própria cultura em seu sentido maior. 

O dramaturgo apontava a necessidade de reconhecimento de que o país tem uma identidade peculiar, um impulso criativo potente e único, mas ainda recalcado. Em microcosmo, o anseio de superação de uma fase incipiente na construção nacional está presente na saga revolucionária vivida pelo Oficina em mais de seis décadas. 

Em meio a dificuldades inauditas, o teatro da rua Jaceguai, nasceu, fez sucesso e foi desfigurado porque nunca abriu mão da ousadia. Viveu as catacumbas do exílio e das ruínas. Renasceu, foi reerguido com esplendor. Arrostou as dificuldades com sabedoria, com base na força de sua dramaturgia e o aprendizado de um tanto de habilidade brasileira. 

Nada disso foi aleatório. Ou seja, o Oficina não pode ser corretamente avaliado exclusivamente pela qualidade do seu trabalho, muitas vezes combatido, mas pelo ambiente que o criou, o tornou aceito e pelo público que acabou por consagrá-lo. O que isso diz sobre o Brasil?

Projetado numa escala nacional, o caso do Oficina e de Zé Celso pode servir como exemplo para que germine uma crença no potencial da invenção do país, com base na superação das condições de dependência, precarização e no complexo de inferioridade.

Zé Celso propugnava a apropriação de uma consciência cósmica do papel do Brasil e dos brasileiros no mundo, vistos como capazes de, em meio a toda a crueldade e egoísmo, buscar a reinvenção permanente. 

Ele via, no presidente Lula em especial, o agente da incorporação de uma visão cósmica necessária, única e insubstituível, com o centro agora transferindo-se para a floresta, a natureza, para a cosmologia indígena. A eleição para o terceiro mandato de Lula representou a escolha desse líder de origem popular, obcecado pela missão de combater as desigualdades e conduzir o povo ao centro do palco.

Mais do que isso, Zé Celso identificava-se com a convicção Lula segundo a qual o Brasil vai ocupar um novo papel. 

Assim como o Oficina ressurgiu das cinzas do incêndio do velho teatro nas décadas de 70 e 80, Lula saiu da prisão para a Presidência, com a ambição de alterar a maneira como o Brasil enxerga a si mesmo. A morte de Zé Celso e seu legado são, antes de tudo, um testemunho a interpelar o país. Mais do que uma possibilidade, a nação deve encará-lo como uma responsabilidade.